sábado, 8 de dezembro de 2012

A ideologia do branqueamento no Brasil, o racismo brasileiro - parte 04

6. Negro Contra Negro

Em 1921, o Estado do Mato Grosso ofereceu concessões de terras para empresários americanos. Quando souberam do recrutamento de trabalhadores afro-americanos para ocupar tais terras, imediatamente, o presidente do Estado, um bispo católico, cancelou as concessões. O Itamarati, em medida preventiva, deliberou negar vistos diplomáticos para esses potenciais imigrantes.30 Dada a preocupação da elite em evitar o "enegrecimento" do país, dois deputados federais — Andrade Bezerra (PE) e Cincinato Braga (SP) — apresentaram o Projeto de Lei nº 209 no Congresso, após o episódio, em 1921, propondo a proibição da entrada de imigrantes negros. Sem apoio político suficiente, o projeto foi arquivado; todavia, a idéia permaneceu viva. Dois anos depois, um outro deputado federal, Fidélis Reis (MG), apresentou uma nova versão do projeto cuja essência continuava sendo a barreira de cor.31 A repercussão na opinião pública teve desdobramentos na "imprensa negra", que mediante uma série de artigos não escamoteou sua posição sobre a matéria:
A imigração negra norte-americana prejudica a solução do problema negro brasileiro e ameaça a harmonia da raça e a paz da nação.
Estamos alistados no exercito daquelles que combatem em todo e qualquer terreno, a invasão do negro norte-americano no nosso paiz.
Apoiamos francamente attitude patriotica assumida pelo governo ante a grave ameaça da immigração negra, e a combateremos pela pena e pela palavra porque ella representa, indiscutivelmente, o maior prejuiso para a solução do problema negro brasileiro. (Getulino, Campinas, 23/9/1923:1)32

Assim, quando se cogitou a imigração de negros norte-americanos para o Brasil, a "imprensa negra" reagiu com repulsa. Os motivos eram diversos. Um dos argumentos era que tais negros transplantariam o ódio racial para nosso país, representando uma "ameaça à harmonia e à paz da nação". Como a fusão das raças implicaria, necessariamente, o desaparecimento do negro, a entrada de negros americanos iria retardar este processo:
A vinda dos negros norte-americanos será o golpe de morte para aquela obra mathematica, do desapparecimento gradativo da raça negra no Brasil. (Getulino, Campinas, 23/9/1923:1)

Os autores destes artigos avaliavam o negro norte-americano como refratário à miscigenação; logo, sua presença no país colocaria em risco o projeto de branqueamento, embora cientes de que a imigração estava orientada politicamente por uma conotação racista: contra negros, índios e asiáticos, os articulistas defendiam a entrada de imigrantes como necessidade. Portanto, a questão devia ser colocada nos seguintes termos: qual era o imigrante mais conveniente para resolver o problema do negro?33
Não cuidamos de saber se, por exemplo, a imigração russa nos e prejudicial ou util. Ignoramos se nos convem ou não que para aqui afluam correntes de israelitas. Nesse ponto, podemos dizer que apenas somos unanimes quando se trata da immigração de pretos.34

Apesar da dúvida quanto à qualidade étnica dos estrangeiros que entraram no estado de São Paulo, era praticamente consensual a rejeição da "immigração de pretos". Os vários grupos étnicos aceitos pela política imigratória do estado renovavam a esperança de branqueamento. Por isso, a seleção racial passava estritamente pelo critério: ser de "raça branca", independente da origem nacional do imigrante.

Considerações Finais

O fenômeno do branqueamento tinha a "proeza" de ocultar o racismo anti-negro que trazia na sua essência Este fenômeno foi levado a cabo de maneira acentuada pela elite paulista no início do século XX, sendo difundido intensamente pelo discurso científico e previsões estatísticas. Já sua dimensão ideológica, penetrou e foi compactuada ou absorvida por uma fração da comunidade negra, sob a forma de branqueamento: "estético", "biológico" e "social". O paradigma branco de beleza, comportamento, moral, mentalidade, etiqueta e cultura, foram assimilados e reassimilados, total ou parcialmente, por alguns membros daquela comunidade. O embuste racial chegou ao extremo de alguns negros repudiarem a hipótese do Brasil e, em particular, São Paulo, receber imigrantes do mesmo grupo racial, fossem estadunidenses ou africanos, pois temiam o "enegrecimento" do estado.

Como escreve Iray Carone, o branqueamento foi "uma pressão cultural exercida pela hegemonia branca, sobretudo após a Abolição da Escravatura, para que o negro negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma espécie de condição para se integrar (ser aceito e ter mobilidade social) na nova ordem social" (Bento & Carone, 2002:14). Em linhas gerais, essa também é a explicação de Florestan Fernandes, para quem só é possível entrar no "mundo dos brancos" passando por um "processo de abrasileiramento que é, inapelavelmente, um processo sistemático de embranquecimento" (Fernandes, 1972:16).35 Contudo, é necessário repensar essa interpretação corrente de conceber branqueamento como sinônimo ou pré-requisito da integração do negro na sociedade de classes. Segundo Maria Aparecida Silva Bento, "isso decorre do fato de que essa sociedade de classes se considera, de fato, como um ‘mundo dos brancos’ no qual o negro não deve penetrar" (Bento & Carone, 2002:52). Já Angela Figueiredo vai mais longe, postulando que "quase todos nós nascemos embranquecidos, visto que há uma predominância dos aspectos da cultura branca — se é que assim podemos denominá-la — em nossa sociedade, e só enegrecem ou se tornam negros ao longo dos anos os que optam por incluir em suas vidas os aspectos identificados com a ‘cultura negra’ e se tornam curiosos em conhecer o seu passado" (Figueiredo, 2002:104).

De toda sorte, foi possível inferir que a ideologia do branqueamento no início do século XX em São Paulo deformou as relações raciais: contribuiu para desenvolver, no branco, um certo complexo de superioridade e, no negro, em contraposição, um complexo de inferioridade. Os brancos, independente da classe social, produziram uma auto-representação positiva e concebiam seus valores como naturalmente superior. Já alguns negros, construíram uma auto-imagem negativa e passaram a se avaliar como inferiores.36 Na verdade, estabeleceu-se um círculo vicioso: quanto mais profundos os traumas do racismo, mais o negro ajustava seu comportamento e atitudes de acordo com a ideologia do branqueamento; quanto maior os ataques racistas, mais profundos eram os traumas. Nesse sentido, a interiorização da ideologia do branqueamento pelo negro deve ser entendida como um mecanismo psicossocial, utilizado para evitar as agruras do racismo à paulista.

Referências Bibliográficas

Neste link do texto original no Scielo.

*Este texto é a versão parcial e reajustada de um dos capítulos da minha dissertação de mestrado, intitulada Uma História Não Contada. Negro, Racismo e Trabalho no Pós-Abolição em São Paulo (1889-1930), FFLCH/USP, 2001. Agradeço às valiosas sugestões dos(as) pareceristas da revista para a melhoria deste artigo.

NOTAS

30. Ao consultar o arquivo do Itamarati, Jeff Lesser constatou que, em 1921, "o ministro das Relações Exteriores, José Manoel de Azevedo Marques, temendo a entrada de afro-americanos no País, instruiu a Embaixada do Brasil em Washington e os consulados a recusar vistos para todos os ‘imigrantes negros destinados ao Brasil’" (Lesser, 1994:85).

31. Uma análise desses projetos encontra-se em Skidmore (1976:212-16) e em Souza Ramos (1996:65-8). Como afirma este autor, para a elite "o risco da imigração de negros norte-americanos, para além de sua suposta inferioridade racial, consistia na possibilidade de que não se fundissem, seja fisicamente ao trabalhador nacional, seja simbolicamente à cultura brasileira" (ibidem:79).

32. "Fomos sempre, intransigentemente, contrarios á entrada dos negros norte-americanos no Brasil, isso porque não era um individuo que buscava agasalho em nossa Patria, mas um bando de homens que prentendia invadir a nossa terra, trazendo além da differença de costumes, de habitos, de tradições e de lingua, o odio indomavel à raça branca existente nos negros ‘yankees’" (Getulino, Campinas, 24/2/1924:1). Ver, também, 30/9/1923.

33. Quando Ford resolveu montar uma unidade exploratória dos recursos minerais e reservas naturais no norte do país em 1929, voltou aos noticiários a polêmica da imigração de negros americanos. Os jornais eram radicalmente contra que se importasse trabalhadores negros. "Os comentários a respeito da propalada emigração de negros americanos para o Pará (concessões do Tapajos) promovida pela empresa Ford parece que foram precipitadas (Progresso, São Paulo, 28/7/1929).

34. "Colonias extrangeiras" (Progresso, São Paulo, 31/1/1930:1).

35. Tal assertiva, igualmente, encontra-se em Cardoso & Ianni (1960:224).

36. Roger Bastide destacou a ambigüidade da ideologia racial construída pelos negros: "há pois uma ambivalência nessas ideologias, um flutuação entre o racismo puro, o orgulho da cor, e um sentimento de inferioridade, que leva à imitação do branco, à adoção dos seus pontos de vista, e à tentativa de apresentar a imagem de um negro branco" (Bastide & Fernandes, 1959:167).

Fonte: Scielo (Estud. afro-asiát. vol.24 no.3 Rio de Janeiro 2002)
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-546X2002000300006&script=sci_arttext
Autor: Petrônio José Domingues

Ver também:
A ideologia do branqueamento no Brasil, o racismo brasileiro - parte 03
A ideologia do branqueamento no Brasil, o racismo brasileiro - parte 02
A ideologia do branqueamento no Brasil, o racismo brasileiro - parte 01

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