quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Argentina: branca, hispânica e católica - Parte 2

Escrito por Ruben Holdorf; 06-Dez-2009

As relações da elite e políticos, militares e religiosos com os nazistas de Hitler

Antissemitismo

Não obstante o engajamento político e ideológico com o nazismo, a cúpula argentina patenteava seu asco contra a presença de judeus no país. Goñi confessa ser esse um dos segredos mais vergonhosos da história deles, pois "nenhum outro país tomou medidas tão extraordinárias para cancelar seus ‘vistos de entrada' para judeus quanto a Argentina, às vésperas do Holocausto de Hitler".(8) O escritor portenho cita as palavras do embaixador argentino em Londres, Tomás Le Breton, explicando a negativa de vistos para crianças judias, porque "eram exatamente o tipo de gente que o governo argentino não queria no país, pois iam crescer e ajudar a aumentar a população judaica por propagação".(9) Depois desse episódio, ele solicitou que os britânicos os esterilizassem antes de enviá-los à Argentina. É óbvio que eles recusaram tal absurdo.

Outro britânico, o ex-primeiro-ministro Winston Churchill, interpretando o pensamento de Hitler sobre o antissemitismo, narra as intenções nazistas para os judeus:
Qualquer organismo vivo que deixasse de lutar por sua existência estava fadado à extinção. Um país ou raça que deixasse de lutar estava igualmente condenado. A capacidade de luta de uma raça dependia de sua pureza. Daí a necessidade de livrá-la dos elementos contaminadores estrangeiros. A raça judaica, por sua universalidade, era necessariamente pacifista e internacionalista. O pacifismo era o mais letal dos pecados, pois significava a rendição da raça na luta pela vida.(10)
Antes de serem conduzidos aos campos da morte, os judeus mais abastados sofreram todo o tipo de assédio. Ameaçados de deportação, muitos rogavam aos amigos e parentes nos Estados Unidos a transferência de valores para as contas dos nazistas em bancos suíços, portugueses e argentinos. Sempre havia um negociador suíço envolvido na trama. A Espanha serviu de laboratório para a engenharia militar antes da Segunda Guerra e Portugal passou a ser um paraíso fiscal e trampolim de escape para os nazistas. Daí a imunidade territorial desses três países europeus às tropas alemãs, erroneamente considerados neutros pelos historiadores.

O chefe da Imigração na Argentina e antropólogo Santiago Peralta, difundia a maquiavélica ideia de que os judeus deveriam ser culpados pela morte de Cristo, "que pregou o amor, a doçura e a paternidade entre os homens, contra a religião de Jeová, que é uma religião de punição, ódio e medo". Peralta recebia a corroboração do cardeal argentino Antonio Caggiano, defensor do dever de cristãos em perdoar os nazistas pelo que fizeram no Holocausto.(11) Ao defenderem o direito de perdão aos nazistas, e aos judeus o destino à "pira de Torquemada", os argumentos contraditórios dos líderes argentinos demonstravam a raiz da ignorância, da intolerância e da violência.

Apesar das evidências antissemitas do catolicismo, inclusive detalhadas no filme de Costa-Gravas, Schmidt se apega a algumas linhas da desaparecida e quase lendária Encíclica Escondida, de Pio XI, em cujo conteúdo o papa condena o "racismo ‘por ser unicamente a luta contra os judeus', reprovada mais de uma vez pela Santa Sé, ‘sobretudo quando desdobravam a capa do cristianismo para se abrigarem nele'", e continua, estabelecendo "que ‘os métodos perseguidores do antissemitismo não podem, de modo algum, se conciliar com o espírito autêntico da Igreja Católica'", protetora do "povo judeu contra os ataques injustos de que tem sido vítima". Logicamente que não se pode incluir nesse contexto o processo inquisitorial movido contra os judeus na Península Ibérica entre os séculos 15 e 18, tampouco o papel omisso do pontificado de Pio XII, descrito por Schmidt como "o encabrestamento da insanidade genocida de Adolf Hitler".(12)

A religião e os fugitivos

Hitler não deixou o sincretismo religioso imperar durante o período em que se entronizou no poder. Ele criou uma igreja nacional para os "autênticos" cristãos alemães. As igrejas que reivindicaram por motivos de consciência sua independência foram proscritas, colocadas na ilegalidade, caso do grupo de jovens católicos denominado Rosa Branca, segundo Hourdin,(13) exterminado pelos nazistas.

Ao comentar e se admirar com a coragem de Kurt Gerstein, Hourdin erra ao chamá-lo de católico, citá-lo como oficial da SS e traçar seu objetivo como militar, cujo intuito visava a desvendar os bastidores dos campos de concentração. Personagem principal do filme Amém, o tenente Gerstein era luterano. Depois de testemunhar as atrocidades dos campos de extermínio, o oficial tenta denunciar e buscar apoio junto à Igreja Luterana, mas essa nega a se envolver contra o regime. Por esse motivo Gerstein procurou Von Galen. No entanto, este o expulsa e também repudia qualquer tipo de auxílio. Seu invento, o Zyklon B, passou a ser manuseado para outros fins e ele ficou acuado pelo alto-comando da SS a responder pela aquisição, transporte, manipulação, orientação e uso do ácido da morte. Médico, Gerstein entrou para a SA, incorporado ao exército alemão e não à elite da SS.

No que se refere ao assunto religião, Goñi repudia essa fachada cristã dos nazistas, rotulando-os de pagãos, pois na Argentina eles veneravam o sol mancomunados aos terroristas montoneros, os mesmos que "fizeram campanha para o candidato peronista à presidência, Carlos Menem".(14) Esse fascínio dos nazistas pelo ocultismo ou práticas pagãs recebe a confirmação de Churchill, acusando Hitler de invocar "o temível ídolo de um Moloch que tudo devorava, e do qual ele era o sacerdote e a encarnação".(15)

Não foram poucos os refugiados aceitos na Argentina. A maioria com empregos no serviço público ou em postos de indústrias alemãs, como a Mercedes-Benz. Caso do carniceiro Adolf Eichmann, descoberto e sequestrado pelo Mossad (serviço secreto israelense), depois julgado e enforcado. Somente da Alemanha, mais de 500 militares conseguiram abrigo sob o manto protetor de Perón. Somando-se a esses, milhares de criminosos austríacos, franceses, belgas, holandeses, eslovacos e croatas. Da Croácia conseguiram se evadir mais de trinta mil personagens apenas para a Argentina.

O cardeal austríaco Alois Hudal, que presta auxílio ao "Doutor" no filme Amém, fornecendo-lhe um passaporte argentino, também é incriminado por Goñi. Este acrescenta à lista criminosos franceses gentilmente "ajudados, em sua fuga, pelo Vaticano e pela Igreja Católica argentina", não deixando de delatar o futuro papa Paulo VI, Giovanni Battista Montini, manifestando "o interesse do papa Pio XII em arranjar a emigração ‘não apenas de italianos' para a Argentina... ou seja, oficiais nazistas".(16)

Com o propósito de acobertar os nazistas dos aliados e seus tribunais, Perón e seus comparsas estruturaram uma rede internacional de resgate de criminosos de guerra. Algumas histórias se transformaram em mito, como a de Martin Bormann, secretário de governo de Hitler. Os chilenos diziam que ele se fixou como fazendeiro no país, migrando para a Bolívia e finalmente para a Argentina. Goñi(17) garante a morte de Bormann durante a queda de Berlim. A ex-secretária de Hitler, Traudl Junge,(18) concorda com essa hipótese, relatando sua morte provavelmente em Berlim, em 2 de maio de 1945, quando cometeu suicídio ingerindo cianeto de potássio. Entretanto, ao condená-lo à morte à revelia por crimes de guerra, o Tribunal de Nurembergue plantou a semente da dúvida a respeito de seu desaparecimento. Informado pelo serviço secreto britânico, Churchill atesta que "Bormann tentou passar pelas linhas russas e desapareceu sem deixar vestígios".(19)

Paz com criminosos

Hitler e Perón passaram, mas permaneceram os resquícios. E eles podem ser detectados nos discursos e atitudes de governantes contemporâneos, mas de índole populista com raízes no passado tirânico e intolerante. Em momento algum existe qualquer relação entre nazismo e catolicismo em Churchill. Ele confronta ideologia com ideologia, analisando o fascismo como "a sombra ou o filho feio do comunismo... Assim como o fascismo brotou do comunismo, o nazismo desenvolveu-se a partir do fascismo... estavam destinados a mergulhar o mundo num conflito ainda mais hediondo, que ninguém pode afirmar que tenha terminado".(20) Junge esclarece essa preocupação ao elucidar as mudanças ocorridas na Alemanha pós-guerra:
A maioria dos alemães entende o processo como um ponto final, a partir do qual reina um silêncio coletivo sobre o período nazista. De um lado, os interesses dos aliados facilitam esse processo: os alemães precisam ser parceiros da Guerra Fria, no lado ocidental e no oriental. Do outro, os políticos alemães da era de Adenauer cortejam a boa vontade dos eleitores - e quem apoiar a exigência de um "ponto final" terá mais probabilidade de recebê-la... Ralph Giordano chama isso a "grande paz" com os criminosos. Somente no final dos anos 1960, a segunda geração do pós-guerra irá forçar seus avós a tomarem partido.(21)
Durante a ocupação aliada e a reconstrução da Alemanha como parte do Plano Marshall, havia a preocupação em se esquecer o passado. No entanto, esse passado se tornou obscuro para as gerações posteriores até o momento em que não foi mais possível encobrir as subterrâneas conexões com o nazismo. Houve um rompimento entre gerações. As novas gerações não admitem qualquer vínculo com aquele período de nódoa, desonra para a história da nação germânica. Daí a acusação de Giordano contra aqueles omissos quanto a presença de criminosos circulando livremente pelo território em atenção a um "ponto final" e seus interesses políticos e financeiros. Para se compreender essa questão, é suficiente lembrar que o Tribunal de Nurembergue jamais condenou um empresário ou cientista nazista à morte, mesmo contendo provas cabais da participação desses em crimes de guerra.

Quanto aos argentinos, permaneceram incólumes à parceria política, econômica, militar e religiosa com os nazistas europeus. Vez ou outra o peronismo ascende ao poder. Até mesmo o crítico de política Noam Chomsky, professor do MIT, intitula os governos argentinos de "neonazistas".(22) Parece difícil acontecer um rompimento entre as gerações na Argentina. Sua história, bem como as das colônias alemãs no Sul do Brasil, no Chile e Paraguai, prossegue no limbo de arquivos estatais ou na memória daqueles que sofrem com as torturantes lembranças. E esse processo de renascimento de governos populistas - não somente na América Latina -, reforça e solidifica a volta da censura, do medo, da intransigência e do despotismo.


Ruben Holdorf é jornalista graduado pela UFPR, doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), tem dois mestrados, um Multidisciplinar em Comunicação, Administração e Educação (Unimarco) e outro em Educação (Unasp), é diretor de Jornalismo da Rádio Unasp e leciona no curso de Jornalismo do Unasp.

Notas

8 Ibid, p. 56.

9 Ibidem, p. 64.

10 CHURCHILL, Winston S. Memórias da Segunda Guerra Mundial. 2 ed. Rio : Nova Fronteira, 1995, p. 31.

11 GOÑI, Uki. A verdadeira Odessa: o contrabando de nazistas para a Argentina de Perón. Op. Cit., pp. 69 e 120.

12 SCHMIDT, Ivan. Canal da Imprensa. A conspiração do silêncio. Op. Cit.

13 HOURDIN, Georges. Vítima e vencedor do nazismo: Dietrich Bonhoeffer. Op. Cit.

14 GOÑI, Uki. A verdadeira Odessa: o contrabando de nazistas para a Argentina de Perón. Op. Cit., p. 134.

15 CHURCHILL, Winston S. Memórias da Segunda Guerra Mundial. Op. Cit., p. 42.

16 GOÑI, Uki. A verdadeira Odessa: o contrabando de nazistas para a Argentina de Perón. Op. Cit., pp. 117 e 123.

17 Ibid, p. 23.

18 JUNGE, Traudl. Até o fim: os últimos dias de Hitler contados por sua secretária. Rio : Ediouro, 2005, p. 183.

19 CHURCHILL, Winston S. Memórias da Segunda Guerra Mundial. Op. Cit., p. 1.088.

20 Ibid, p. 11.

21 JUNGE, Traudl. Até o fim: os últimos dias de Hitler contados por sua secretária. Op. Cit., p. 218.

22 CHOMSKY, Noam. Estados fracassados: o abuso do poder e o ataque à democracia. Rio : Bertrand Brasil, 2009, p. 209.
Atualizado em ( 06-Dez-2009 )

Fonte: Revista Acta Científica (UNASP), texto completo em PDF no link abaixo
http://www.unasp-ec.com/revistas/index.php/actacientifica/article/view/293

Texto também citado no site Onda Latina Onda Latina

Ver:
Argentina: branca, hispânica e católica - Parte 1

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